PALAVRAS P. Momag
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Marcelo Mudou

buscando
infinito em meio ao caos

O caso da adoração da natureza para lidar com o culto à morte capitalista

Ultimamente, tenho sentido vontade de gritar até que minha voz se rompa. Sinto um uivo preso no topo de minha garganta, impulsionado por ondas de angústia e raiva, uma insatisfação faminta borbulhando em meu íntimo, um vazio ocupando todo o meu corpo.

Enquanto escrevo este texto, meu país está enfrentando mais uma crise ambiental. O sul do Brasil está se afogando em enchentes históricas, deixando para trás muita destruição e muitas mortes que poderiam ser evitadas. A escala da devastação é avassaladora, reproduzindo a sensação terrível que infelizmente experimentei em episódios anteriores da saga brasileira de catástrofes climáticas.

Mesmo assim, apesar da falta de vontade ou inspiração, preciso reunir forças para abrir meu computador mais uma vez e trabalhar nas entregas do meu emprego. Não devo reclamar muito - tenho a sorte de ter conseguido um emprego na área ambiental, trabalhando para uma organização não governamental progressista que está alinhada com muitas das minhas crenças, em um cargo para o qual trabalhei muito.

No entanto, apesar das muitas noites sem dormir que passei sonhando ansiosamente em encontrar um emprego como o que tenho atualmente, ainda me pego terminando minhas horas de trabalho sentindo como se minha alma tivesse sido drenada do meu corpo.

Embora eu saiba que o trabalho que venho fazendo certamente está transformando vidas e alimentando iniciativas ambientais belas e inspiradoras, o peso da vida cotidiana de um jovem membro da classe trabalhadora muitas vezes acaba com a alegria que senti ao finalmente poder me envolver profissionalmente em discussões para a construção de um futuro regenerativo.

Passo meus dias pensando em dinheiro, sucesso, planos e estratégias e na suposta obrigação de me aprimorar continuamente para me tornar mais vendável na arena sangrenta que é o mercado de trabalho. Minha cabeça se inflama ao pensar que, apesar de tudo isso, há uma chance de que meu cargo seja descontinuado por falta de recursos, que eu não consiga me aposentar e que, nesse mesmo segundo, em algum lugar do mundo, uma quantia impensável de dinheiro caia na conta bancária de algum bilionário.

Esse grito que brota dos recônditos mais profundos do meu ser parece se acalmar em um único momento do dia - quando finalmente fecho o computador e saio para uma caminhada de uma hora perto de onde moro. Todos os dias, eu cultivo esse ritual de caminhada - e ajuda o fato de eu ter a sorte de morar em uma casa próxima a uma reserva natural onde é possível encontrar uma pequena amostra do Cerrado.

O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil e, sendo a savana de maior biodiversidade do mundo, é a personificação natural do conceito de resiliência. Apesar de seu poder incomensurável, sua beleza pontiaguda e sua centralidade na viabilização da vida na região, a vegetação nativa desse território está sendo devastada pela agricultura industrial e pela pecuária, os exemplos mais dominantes do poder destrutivo do extrativismo na região.

Esse paradigma de desenvolvimento, impulsionado pela devastação sistêmica do ecossistema e de seu esplendor natural, é sustentado por lapsos momentâneos e desigualmente distribuídos de crescimento econômico, que resultaram na destruição de mais da metade de toda a vegetação nativa do Cerrado nos últimos 50 anos.

Fotografia de Marcelo Mudou

A realidade preocupante do meu ecossistema, da qual sou lembrado com frequência ao testemunhar a falta de ação para protegê-lo e nutri-lo, me torna ainda mais consciente da minha profunda conexão com ele, especialmente durante minhas caminhadas após o trabalho. 

Embora eu tenha apenas algumas horas restantes no dia depois de terminar o trabalho, esse breve momento em que posso respirar fundo e sentir o cheiro da terra e das gramíneas nativas dessa terra seca imensamente diversificada parece suspender momentaneamente a frustração que me acompanha. Parece que quando me dou ao luxo de dedicar uma hora do meu dia, em que cada segundo se tornou mercantilizado, para encarar o tronco torto de uma das árvores peculiares do Cerrado, sou invadido por um lampejo de clareza. 

Durante esse ritual diário, lembro-me de que eu também sou a natureza e que faço parte dessa eterna dança divina que é a vida na Terra. Uma percepção surge em minha mente como uma lembrança querida, e fica claro para mim, mais uma vez, que a maneira como somos ensinados como a única forma de viver, existindo como se fôssemos algo à parte dos ciclos naturais, cujo único objetivo deve ser acumular e consumir, não passa de uma mentira extremamente bem divulgada. 

A compreensão da natureza que nos foi imposta por nossa educação a coloca em oposição direta à humanidade, como algo desprovido de significado e vontade, algo sem poder ou movimento, ou como um recurso existente apenas para ser extraído até a exaustão. Essa visão me parece ser uma das motivações mais claras para o desconforto generalizado que sinto.

Visualizar-me como apenas mais uma engrenagem em um sistema que busca lucros infinitos em um planeta que é tão abundante, mas tão claramente finito, sempre faz meu coração bater mais rápido. Como é possível que eu, que me beneficio tanto das infinitas dádivas que a Mãe Terra me concedeu, permita que minha vida seja gasta alimentando, mesmo que indiretamente, um sistema que se alimenta da destruição da fonte primordial da vida?

Somente quando sinto novamente a brisa seca do planalto central brasileiro em minha pele é que consigo retornar, de certa forma, ao espaço mental de minha conexão anterior. A comunhão com os espaços da natureza não humana mais uma vez tem seu efeito sobre mim, e me lembro de quão ridiculamente pequeno é o culto à morte em que consiste o capitalismo diante dos infinitos ciclos de renascimento que dirigem a existência na Terra. 

Enquanto olho para a imensidão do céu azul de Brasília, penso nesses ciclos de reciclagem cósmica, de transformação contínua, e sinto minha cabeça ocupada com pensamentos sobre como poderia ser uma vida diferente. Uma vida regida pela mudança das estações, em que minha força vital não seja espremida do corpo todos os dias para apagar incêndios inventados, em que eu possa respirar com calma e não me preocupar com um mundo que caminha para um precipício, guiado pela ganância de poucos, em detrimento de tantos. 

Esses sonhos, de alguma forma, me trazem calma. Eles regam um instinto pessoal que sempre surge após momentos de reconexão com espaços naturais: para combater a destruição, a tragédia e a miséria que acompanham a ruptura entre a natureza e a humanidade, é fundamental tratar a Terra como uma entidade divina que merece veneração assídua e dedicada. 

O fato de nos reconhecermos como parte de uma totalidade que engloba montanhas, peixes, pessoas, espíritos e florestas nos permite reconhecer que a destruição guiada pelo modo de vida capitalista é um ataque direto a nós mesmos. Mais importante ainda, uma reconexão espiritual com a natureza não humana nos permite colocar em perspectiva toda a mesquinhez da vida cotidiana e reconhecer como nossas energias poderiam ser facilmente redirecionadas para nutrir e regenerar as teias da vida afetadas pela eterna e insaciável busca do lucro e do crescimento econômico. 

Fotografia de Marcelo Mudou

Felizmente, por ter sido exposto a diferentes cosmologias ameríndias durante minha formação, como as dos povos Tukano, Yanomami e Xerente, entre muitas outras tradições antigas desprovidas de dualismos entre sociedade e natureza, sei que não há nada de novo nessa perspectiva. Sei também que um sistema socioeconômico alimentado pela destruição e pela pilhagem está longe de ser inerente a uma suposta natureza humana. 

Pelo contrário, culturas antigas em todo o mundo foram e continuam sendo governadas por regimes sociais, culturais e espirituais enraizados em uma profunda noção de coexistência com naturezas não humanas. Não é de se admirar que a esmagadora maioria da biodiversidade que continua a resistir ao apetite insaciável das grandes empresas esteja localizada em territórios indígenas, que também estão sob ataque contínuo das forças do "progresso". 

É importante deixar claro: não acredito que as complexas conexões espirituais que permitem que diferentes povos indígenas vejam a humanidade e a natureza como um continuum sejam facilmente palatáveis para a mentalidade daqueles que sempre viveram suas vidas em um relacionamento quebrado com o mundo não humano. Tampouco acredito que seja apropriado que pessoas não indígenas, que estão desconectadas das muitas lutas dos povos indígenas, se apropriem de espiritualidades que não correspondem às suas culturas. 

O que eu acredito é que muitas das respostas para as monstruosas crises climáticas e de biodiversidade, bem como para a sensação de alienação e falta de sentido que permeia a existência sob o capitalismo, estão no cultivo de vínculos espirituais com a natureza não humana. Ao nos inspirarmos no conhecimento tradicional, podemos ver a natureza como um fluxo contínuo de transformação que, mesmo diante das circunstâncias mais improváveis, consegue encontrar uma maneira de nutrir a vida. Podemos ser levados a pensar em nós mesmos como parte de um poder divino que nos permite viver nossas vidas, que são tão complicadas, mas que têm o potencial de serem tão gloriosas. 

Pensar na Terra como uma deusa polimórfica, uma força vital que abrange tudo, pode nos permitir lembrar que o estresse é uma explosão momentânea e minúscula em comparação com a grandeza e o terror da eterna roda de nascimento e decadência. Como um sistema socioeconômico que existe há apenas alguns séculos pode ser desculpado por existir se ele destrói o planeta que nos abençoa com suas águas, sua fertilidade e sua beleza?

Pode ser que, se pararmos por um momento para sentir o sol em nossa pele, refletirmos sobre a multiplicidade da vida em nosso sistema digestivo e ouvirmos o chamado da terra, possamos nos lembrar de nossa obrigação coletiva de defender o único planeta que temos. Talvez, ao venerar os micélios e os muitos outros fenômenos naturalmente mágicos que nos cercam diariamente, possamos acordar do estado de sonolência que nos permitiu chegar ao cenário aterrorizante de um mundo que está submerso e em chamas ao mesmo tempo. 

Talvez, se conseguirmos cultivar a clareza acompanhada de uma reconexão com os espaços naturais, possamos canalizar a frustração e a raiva que pairam sobre nós com gritos abafados para uma ação regenerativa, construindo um futuro de prosperidade tanto para a humanidade quanto para a natureza que a compõe. 

Quem sabe, se superarmos essa dicotomia que nos foi imposta e nos aceitarmos como parte de uma totalidade incompreensível e infinita, poderemos vir a nos venerar como um milagre cósmico que coexiste com tantos outros. Talvez então possamos superar o pesadelo de viver uma biografia cuja prioridade máxima é pagar a próxima conta e aproveitar radicalmente a abundância de nosso planeta.

Fotografia de Marcelo Mudou

P. Momag é um cientista social brasileiro e ativista eco-socialista que vive entre Brasília, Brasil, e Buenos Aires, Argentina.

Marcelo Mudou é um artista e fotógrafo brasileiro que vive
em São Paulo, Brasil.